10 motivos pelos quais a carne cultivada deve superar a carne tradicional

Uma tecnologia emergente favorável em diversas questões

Julio Cesar Prava
10 min readOct 7, 2023

Não é ficção científica. Nos próximos anos, testemunharemos a ascensão de tecnologias que prometem redefinir completamente a maneira como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos. Elas podem fazer avanços revolucionários em diversas áreas.

Uma dessas tecnologias tem o potencial de afetar a maneira como nos alimentamos e nossa relação de exploração animal. Com o progresso de áreas como bioengenharia e engenharia alimentar, surgiu a área da agricultura e zootecnia celular, que permitem a reprodução de alimentos à partir da cultura de células. Assim, surge a possibilidade da criação de carne cultivada, uma tecnologia emergente sem necessidade da criação de animais.

Atualmente, ao falar de agricultura celular para as pessoas, muitas ficam desconfiadas, talvez até fazem chacota ao dizer que a produção animal pode ser substituída, ainda mais aqui no Brasil, um país quem tem a economia fortemente baseada em pecuária e o povo adora um churrasco. Está tudo bem, o futuro não depende só de opiniões, mas de muitos outros fatores.

Há muitos superricos e as empresas gigantes da pecuária estão investindo nisso também. Sem contar que diversas startups já lançaram protótipos ao redor do mundo. Atualmente, as carnes cultivadas estão sendo comercializadas apenas em Singapura e recentemente ganharam liberação da agência nacional de saúde nos Estados Unidos. Ela ainda tem estruturas simples e por isso é oferecida como carne moída, hambúrguer e pequenos bifes, mas com seu aprimoramento será possível fazer peças inteiras de carne animal.

Como essa tecnologia disruptiva está em estágios iniciais, vários desafios devem ser superados para que ela consiga ser uma alternativa sólida para o mercado e interessante para os consumidores. A tecnologia é embrionária e enfrentará também desafios pela desconfiança do público, mas com grandes investimentos, conscientização ética e ambiental, ela deve ter um progresso muito rápido e substituir a maneira tradicional de produzir carnes.

A regulamentação em escala mundial, a produção à nível industrial, a obtenção de um preço acessível e mudança da percepção dos consumidores são alguns desses desafios a superar, mas caso os esforços deem bons resultados, ela deverá conquistar uma boa parcela do mercado alimentar em alguns anos e em algumas décadas deixar a produção de animais completamente defasada, não que isso vá acabar completamente com ela.

Abaixo listarei 10 motivos de porque essa tecnologia tem é promissora e tem um grande potencial para superar a carne que consumimos vinda de animais de fazenda. Eles mostram o potencial da carne cultivada de causar uma revolução na indústria alimentícia, sendo uma escolha inteligente e que pode ser aderida. Confira!

1. Mais variedade e sabor

Um das grandes dificuldades para o humano deixar de comer carnes é o prazer vindo do sabor delas. Então para que essa a carne cultivada seja efetiva ela precisa ser extremamente saborosa, mas isso não parece um problema para a tecnologia, devido a alta flexibilidade e personalização que poderá se obter. Inclusive, é possível que a carne de laboratório atinja os sabores tradicionais e que vá muito além deles. Com o desenvolvimento das técnicas teremos a possibilidade de mesclar células de diferentes animais e fazer carnes mescladas (blends), trazendo sabores ainda não conhecidos pelos humanos. As quantidades de gorduras e outros nutrientes poderá ser matematicamente calculada para oferecer o que se deseja para cada cliente. Ou seja, a carne tradicional, limitada pela criação e pela própria biologia de cada animal pode ficar completamente defasada quanto ao sabor. A indústria de alimentos já produz sabores que adoramos e não existiam antes, essa tecnologia poderá melhor muito nosso prazer em comer carne.

2. Menor risco à saúde humana

Assim como a questão dos transgênicos, há quem pense que isso poderá ser inseguro para a saúde humana à longo prazo. No entanto, precisamos pensar em dois pontos. Muitas carnes tradicionais não são saudáveis para os humanos, como a vermelha e as processadas. A carne cultivada tem um potencial de ser muito mais saudável, pois ao ser produzida em ambientes controlados pode-se dominar a forma que se produz, moldando aquilo que faz bem ou mal para o ser humano. Indo além, o uso de antibióticos em excesso na criação industrial de animais é um grande problema de saúde pública, esse desafio pode ser facilmente superado pela carne cultivada, além de evitar doenças zoonóticas e futuras pandemias, o saldo parece bem positivo, o medo dos humanos quanto à saúde é relevante, mas neste caso parece mais preconceito e conservadorismo para manter tradições que algo racional e embasado.

3. Menos sofrimento e mais ética

O saldo na redução de sofrimento no mundo será gigantesco. A exploração animal é a maior fonte intencional de sofrimento e morte de seres sencientes no planeta. Nas fazendas e na pesca industrial, os animais vivem vidas miseráveis, com bastante sofrimento físico e psicológico, vistos como propriedades eles acabam sendo explorados e mortos depois disso. A carne celular oferecerá uma uma escolha ética benéfica diante deste cenário distópico. Qualquer pessoa que pretenda ser mais ética, justa e imparcial, reduzindo o sofrimento no mundo, terá essa alternativa, independente de ser ou não vegana.

A carne celular obtida a partir de uma biópsia não implica necessariamente em exploração animal, tal como se os órgãos humanos fossem cultivados a partir de cultura de células de biópsia humana, ambos poderiam ser eticamente utilizados pelos seres humanos. Ignorar isso é ignorar o que pode ser potencialmente melhor para os animais.

4. Menor impacto ambiental

Os gastos energéticos para a produção de carne cultivada serão altos, assim como os de carne tradicional já são, no entanto, nas outras questões isso será esmagadoramente melhor: gastará muito menos água, ocupará muito menos espaço e terra, poluirá menos o ar e o solo, afinal não precisaremos de animais, assim eles não produzirão dejetos, nem precisaremos alimentá-los. Não é impossível, mas é pouco provável que depois de estabelecida a carne cultivada que consigam inventar métodos mais sustentáveis de produzir animais de fazenda, já eticamente não é possível fazer isso, haja visto que é preciso prejudicar seres que sofrem e desejam viver.

5. Mais lucro para os produtores

Os donos do capital adoram ganhar mais dinheiro, é assim que a roda do capitalismo gira. Se eles conseguirem produzir mais carne, mais barata, com mais qualidade, em menos tempo, certamente eles vão lucrar mais, então esse é um bom motivo para que essa tecnologia deixe os pequenos produtores bravos, mas o progresso tecnológico parece inevitável, as indústrias fizeram isso no passado, os aplicativos fizeram isso recentemente e as IAs vão fazer novamente, devido à tecnologia novas áreas surgem destroçando as anteriores. A carne cultivada pode ter seus benefícios para as pessoas, para os animais e para o meio ambiente a curto e longo prazo, mas as motivações baseadas no dinheiro também são favoráreis para as grandes empresas que já dominam o mercado da alimentação.

6. Preço mais acessível para os consumidores

É provável que seja possível produzir carne cultivada de maneira mais barata que a carne tradicional. Ao produzir carne cultivada de forma mais barata poderá também tornar essa carne muito mais acessível para o público, assim dando mais um grande benefício para o público. Se isso acontecer promoverá uma mudança gigantesca, isso sem contar estratégias de vendas inovadoras que podem surgir com vendas recorrentes e sistemas logísticos aprimorados, imagina só, carne a preço acessível e entregue na sua casa por uma empresa, quem não gostaria?

7. Produção mais rápida

Muitos animais criados em fazenda demoram um tempo considerável para serem abatidos, como é o caso dos bovinos e suínos. Com o aprimoramento das técnicas de cultura celular, as carne cultivadas poderão ser desenvolvidas em um tempo muito menor já que serão produções dedicadas que não demandarão todo o ciclo de desenvolvimento de um animal. Com o desenvolvimento da tecnologia, um galpão poderá produzir toneladas de diferentes carnes em um tempo muito menor, o que consequentemente pode tornar o produto final mais acessível e barato, gerando também mais lucro para os produtores.

8. Uma mudança necessária

Muitas pessoas apostam na agricultura e na pecuária sustentável, mas dado o crescimento populacional constante e os altos danos ambientais antropogênicos, será preciso uma transformação gigantesca no modo que consumimos e o sistema alimentar global faz parte disso. A carne celular é uma das tecnologias mais promissoras no que diz respeito à mudança na alimentação no planeta, já que mantém a carne e seu sabor sem os mesmos danos ambientais e com benefícios na redução do sofrimento. Claro, há também tecnologias alternativas éticas como simulacros à base de vegetais e fermentação de precisão. Elas juntas podem gerar segurança alimentar muito além do que qualquer proposta de pecuária tradicional com o rótulo de sustentável.

9. Tecnologias facilitadoras para os consumidores superam tecnologias anteriores

Não adianta lutar contra os avanços tecnológicos benéficos para os consumidores. Os donos de cavalos e produtores de carroças reclamaram quando os carros surgiram. A indústria da música tentou barrar os aplicativos de música. Os taxistas ficaram contra os ubers. As pessoas estão com medo das IAs mudarem várias indústrias também. É claro, muitos pecuaristas ficarão contra a agricultura celular e as carnes de laboratório. Eles dirão que estamos brincando de deus, mas na verdade eles já estudam genética, fazem seleção artificial e inseminação artificial com animais há muito tempo. Eles dirão que elas farão mal, que não terá o mesmo sabor, que isso jamais acontecerá, mas parece que essa tecnologia pode superar todas as carnes que fizemos até hoje. Muitas pessoas ficarão desconfiadas também, isso é normal. Novidades muitas vezes nos assustam, mas essas lacunas de informação e de conhecimento científico podem ajudar a mostrar quão boa pode ser esse avanço. A humanidade progride tecnologicamente, ao mesmo tempo temos que é fundamental termos um debate ético sobre o desenvolvimento tecnológico e quais seus benefícios para os humanos e os animais, além dos impactos ambientais. Mas não há como ir contra o desenvolvimento de tecnologias facilitadoras: mais baratas, mais prazerosas e que trazem mais conforto, ainda mais se elas forem uma boa alternativa para salvar o planeta, os humanos e os animais.

10. Competitividade mercadológica

É preciso se adaptar mercadologicamente. Imagine se os outros países começarem a produzir carne cultivada de qualidade para sua população de forma muito mais rápida e barata que o Brasil, eles deixarão de comprar da gente e nosso mercado irá perder valor, além disso passarão a exportar e assumir um novo mercado muito mais eficiente, então, no mundo globalizado, quem ir no sentido contrário de uma tecnologia melhor tem o risco de ficar pobre, os países emergentes deveriam investir em tecnologia para ser vanguardistas nisso ao invés de ficarem relutantes com a mudança.

Uma questão polêmica

Há uma divisão entre os veganos nessa questão, enquanto alguns tem uma perspectiva idealista e deontológica, outros tem uma visão pragmática e consequencialista (que é o meu caso). Os veganos que tendem a uma visão baseada em regras consideram errado fazer uma biópsia em um animal (porque é um dano, mesmo que pequeno) e errado consumir carne celular por ser um produto de origem animal, já os veganos que pensam nas consequências tendem a apoiar essa mudança acreditando que não há argumentos fortes para dizer que consumir algo derivado de uma célula que não causou sofrimento ou morte é errado e aceitam uma biópsia para produzir carne para a eternidade é a melhor alternativa prática, mostrando que criticá-la pode ser altamente prejudicial para os animais.

A carne cultivada e a agricultura celular podem ajudar a acabar com a pecuária, se isso for verdadeiro os veganos realmente precisariam rever suas crenças e perceber que o veganismo não tem a ver com seus desejos ou com sugerir para que todos comam plantas. Se a agricultura celular puder reduzir exponencialmente ou acabar com o abuso de animais com esses produtos como a carne carne cultivada, então os veganos precisam apoiar essa tecnologia, mesmo que não se tornem consumidores.

Se pensarmos em melhores consequências, é contraintuitivo, mas em um futuro próximo veganos poderão consumir produtos de origem animal, desde que esses produtos sejam de células cultivadas. O movimento vegano é uma postura ética que defende os animais, o fim de sua exploração, sofrimento e morte, não células não-sencientes reproduzidas. Se as células tiverem vindo de uma biopsia animal que não causou dano para o animal (indolor) ou que causou um dano mínimo (como uma picadinha de agulha) e for reproduzida não estará moralmente errada utilizá-la, ainda mais porque os benefícios serão infinitamente maiores que isso.

Bônus: Futuro promissor

Em poucas décadas passamos de uma sociedade desconectada para uma sociedade baseada no uso de internet, em mais algumas podemos ir muito mais longe, afinal a tecnologia tem uma tendência de progredir de forma mais rápida. As pessoas de um século atrás provavelmente nem imaginavam um smartphones, já nós podemos imaginar tecnologias que ainda não existem mas que estão dentro das possibilidades. Aqui eu me arrisco num palpite, um passo seguinte depois da etapa industrial de carne cultivada, haverá uma realidade onde as pessoas têm bioreatores em empresas menores e depois bioreatores caseiros e um mercado de células, assim cada pessoa poderá comprar os sabores que deseja e produzir sua própria carne, de maneira análoga a como fazemos pães nos fornos de casa ou comidas no microondas. Isso levará muito mais tempo, mas é uma possibilidade promissora para o futuro e poderá trazer ainda mais adesão pela questão do comodismo humano.

Um caminho favorável começou

A carne é uma parte muito forte da cultura humana, então produzi-la sem sofrimento e sem vítimas, com mais saúde para os humanos e com menos impacto ambiental, de forma mais rápida e mais barata parece uma solução para muitos problemas atuais que a pecuária enfrenta. A agricultura celular e as carnes cultivadas têm tudo para ser uma solução para muitos problemas na criação de animais de fazenda e da pesca também. Essa tecnologia pode trazer alguns problemas que devem ser pensados, mas o saldo positivo pode ser muito maior, se assim for, incentivar essa tecnologia pode reduzir o sofrimento e trazer justiça social em diversas questões.

Vale lembrar que a tecnologia por si só não supera a visão especista, por isso a consideração dos animais deve ser constantemente mantida à vista. Isso também mostra que não é excludente apoiar a agricultura celular e o antiespecistmo, é preciso reduzir massivamente a exploração dos animais de fazenda e peixes e necessário continuar mostrando as razões éticas para considerar os seres sencientes, inclusive os insetos e o sofrimento dos animais na natureza.

Como vimos, há razões convincentes para considerar essa alternativa à carne tradicional, melhores para os indivíduos e éticas (com benefícios para os animais, para a saúde humana e para questões ambientais). É por isso que a carne cultivada deve substituir a carne provinda da mera criação de animais.

--

--