A carne já é muito barata, ao contrário do que pensam

Produtos de origem animal têm um preço artificial e custam muito menos do que deveriam

Julio Cesar Prava
8 min readJul 19, 2024

A administração pública deve buscar sempre a melhor aplicação dos recursos públicos. Se concordamos que as coisas deveriam ter impostos baseados nos custos, eficiência e impactos negativos de produção, a carne e outros produtos de origem animal deveriam ter um preço muito mais alto do que atualmente.

São vários motivos que fazem com que hoje ela tenha um preço artificialmente baixo, os comumente criticados são:

  • Sua produção altamente custosa e com impactos muito negativos recebe subsídios governamentais e isenção de impostos, regra que não é aplicada para diversos outros alimentos concorrentes que seriam muito mais eficientes para ajudar a alimentar a população, o que colabora para a injustiça e para insegurança alimentar;
  • Há um alto grau de desperdício na conversão calórica/protéica;
  • Há uma maior necessidade de preocupação com a saúde pública;
  • Não há cobrança pelo dano ambiental que a produção das carnes geram;

Mas o mais importante de todos, e menos comum de ser apontado, é:

  • O sofrimento e morte dos animais.

Economia baseada em sustentabilidade, uso de recursos e impacto negativo para os humanos

Particularmente, penso que o impacto para os seres sencientes deve ser colocado em primeiro lugar, tanto na economia quanto na política, pois isso é a defesa da liberdade de todos os indivíduos. No entanto, mesmo aqueles que não computam de forma imparcial os animais de outras espécies (que têm visões antropocêntricas e ambientalistas) podem ver o porque da produção de muitas carnes ser barata.

Se assumimos o impacto na cadeia de produção para colocar custos reais (ambientais, de saúde, de energia, de terra, etc) nos produtos, aqueles produtos que são altamente custosos em sua produção deveriam ter mais impostos, não menos impostos, e não ter ganho de subsídios governamentais. Isso implicaria em um preço bem elevado para este tipo de produto, o que não acontece atualmente para os produtos provindos da exploração animal.

A carne é um produto de alto custo de produção: utiliza muita energia, terra, muita água, muitos grãos e plantas (que deveriam incluir ainda mais preço para a carne), polui o solo, a água e o ar, contribui em alto grau para o aquecimento global.

A produção de carne envolve a alimentação de animais com grãos e vegetais, mas apenas uma fração dessa energia é convertida para consumo, o que podemos considerar como um desperdício na produção, dada sua baixa eficiência. Para produzir 1 kg de carne bovina, é necessário alimentar o animal com muito mais do que 1 kg de vegetais e grãos, essa baixa conversão alimentar torna a produção de carne um processo ineficiente em termos de aproveitamento dos recursos. Claro, isso também é verdadeiro ao falarmos da taxa de conversão e calórica/protéica no caso de muitas carnes.

Se colocado a melhoria na saúde e os gastos com o sistema de saúde, também poderíamos taxar mais alguns produtos animais. Doenças cardiovasculares são os maiores causadores de mortes humanas no mundo e alguns tipos de carne estão ligados à pioras na saúde, como aumento de colesterol. "O modelo de Springmann mostra que se todos nós adotássemos uma dieta vegetariana até 2050, veríamos uma redução na mortalidade global de 6% a 10%, graças a uma menor incidência de doenças cardíacas, diabetes, derrames e alguns tipos de câncer.", diz a reportagem da BBC. Além disso, o uso indiscriminado de antibióticos na criação de animais contribui para o desenvolvimento de bactérias resistentes, o que representa uma grave ameaça à saúde pública e o própria criação de animais aumenta o risco de pandemias de origem zoonótica.

Sabendo de todos os agravantes para produção de carne, os governos deveriam taxar mais a produção de carnes e fazer uma transição para produtos mais eficientes, investindo em novas tecnologias alimentares, o que futuramente lhes daria mais lucro, ao não fazerem isso assumem o risco de ficar na contramão mundial da produção de alimentos.

Basear a economia em valores antropocêntricos e ambientalistas, porém, tem implicações ruins para os animais: além de permitir explorá-los, poderia, como solução para os problemas apontados, colocar um sistema progressivo de impostos onde os animais que causam menos impacto negativo para a saúde humana e para o meio ambiente são mais baratos, isso provavelmente implicaria em mais mortes e mais sofrimento, porque animais menores geralmente causam menos impacto. Por isso, uma economia baseada em justiça, que inclui os animais, é aquela que devemos buscar se estamos preocupados com as melhores decisões morais.

Economia baseada em impacto negativo para os animais

Confiar apenas em métricas centradas no ser humano ou ambientais para determinar a política alimentar é insuficiente para consideração de todos aqueles que podem ser prejudicados, por isso devemos defender um quadro ético que priorize a justiça com os animais.

Governos ou instituições podem oferecer subsídios, incentivos fiscais e linhas de financiamento para produtos considerados essenciais ou estratégicos. Isso acaba por tornar um produto mais acessível à população, mesmo que ele tenha um custo alto de produção, o que acontece com a carne. A exploração de animais é estratégica mercadologicamente e traz benefícios econômicos, isso não quer dizer que seja justificada moralmente, vale lembrar que a escravidão também foi um negócio vantajoso e lucrativo para os exploradores, ao passo que causava extremo sofrimento e mortes desnecessárias, assim como é a exploração animal atualmente.

Se considerarmos que o especismo é injusto e que os seres sencientes não devem ser prejudicados nem mortos, assim como humanos, não há qualquer justificativa para sistemas de exploração animal. Essa visão, que não é considerada pela maioria das pessoas, inclui qualquer ser senciente, desde os explorados em fazendas e os peixes até os decápodes e os insetos. Todos eles têm experiências negativas e positivas, que quando são explorados e mortos são ignoradas completamente. Colocando isso na conta e tratando os animais como deveriam, de forma justa, relevante e igual, a exploração dos animais deve ser abolida.

A desconsideração moral dos animais ocorre por diversos fatores. Um deles é que as pessoas são tão sensíveis ao prazer e tem uma lacuna tão grande de empatia, que não sabem pesar os argumentos de forma imparcial e racional para estabelecer valores e preços, nem para calcular o que é certo e errado em suas escolhas. Os cálculos de ordem ética e de decisão racional acabam por ser completamente afetados pelo prazer imediato mas também por viéses cognitivos, pela herança cultural, por apelos à autoridade, à tradição e à natureza, entre muitas outras posturas irrelevantes para o que está em questão. Os animais, que são indivíduos, acabam sendo prejudicados e pagando com suas existências (que acabam por ser muito sofridas e breves).

Supondo que pudéssemos empatar o custo econômico-ambiental dos produtos de origem animal com os de origem vegetal, a visão do sofrimento-morte embutido mostraria que a melhor escolha seria pela consideração dos animais, afinal este custo negativo não existe para as plantas (pois elas não são sencientes) e existe para os animais, não podendo ser isento com a exploração tradicional. Podemos inclusive procurar formas de mensurar o quantia negativa que cada pedaço de produto animal implica negativamente, usando os critérios de tempo de sofrimento e de anos perdido com a morte.

Já se aqueles que consideram o sofrimento e morte dos animais de diferentes espécies em graus diferentes, mas com um grau razoável de importância, resolvessem colocar o sofrimento dos animais e suas mortes prematuras (sendo eles privados de viverem), saberiam também que o custo é extremamente desproporcional ao ganho. Afinal, um pouco de prazer para um animal (o ser humano) que gera um amplo sofrimento e morte para diversos outros animais não seria bem justificado. É isso que comumente ocorre aos animais não-humanos que, em sua maioria, vivem em sistemas confinatórios e têm vidas miseráveis.

Se colocada a ideia de preço por sofrimento-morte como prioridade, as proteínas não-animais deveriam ser mais baratas mesmo tendo mais custos em termos de recursos, pois implicariam em menos sofrimento e mortes. Portanto, em ambas as visões sobre os animais a economia deveria mudar drasticamente: se considerados os animais completamente, a carne deve ser proibida, já se considerados os animais parcialmente (o que ainda seria uma discriminação injusta), o preço da carne seria muito mais elevado do que atualmente.

Soluções ao nosso alcance

Por outro lado, há tecnologias e produtos que poderiam receber subsídios de forma bem justificada, como a produção de diversos vegetais (principalmente simulacros), fermentação e as carnes cultivadas (que são de origem animal). Essas tecnologias têm o potencial de reduzir quase todos esses problemas apresentados pela pesca, pela pecuária tradicional e por outras formas de exploração atuais.

Apoiar as carnes vegetais e as cultivadas, por exemplo, pode ajudar a reduzir drasticamente a exploração, o sofrimento e a morte dos animais, além de trazer benefícios para os produtores e para os consumidores. Uma estimativa mostra que a carne cultivada seria produzida com 96% menos emissões de GEE, 45% menos energia, 99% menos uso de terra e 96% menos consumo de água, que a produção de carne tradicional, isso sem contar o potencial de redução no sofrimento e morte dos animais.

Um governo responsável com sua administração deve incentivar a produção de carne cultivada em laboratório, eliminando gradualmente a necessidade de criar animais, incentivar o aumento do consumo de proteínas vegetais e a redução do consumo de carnes (aumentando o seu preço) e outros produtos animais, além de criar campanhas para conscientizar o público dos impactos econômicos, ambientais e na vida dos animais, mantendo sua população bem informada.

Vale lembrar que uma possível reavaliação sobre as prioridades econômicas na produção de alimentos, favorecendo a sustentabilidade e/ou considerações éticas, teria que levar em consideração as implicações mais amplas de sua produção, desta forma os incentivos destinados a promover sistemas alimentares baseados em plantas precisariam também prever os mesmos impactos. Levando tudo em conta, alguns alimentos vegetais poderiam sofrer com mais impostos e outros ter menos.

A carne está barata

Quando discutimos o consumo de carne atualmente, na maioria esmagadora dos casos, não estamos falando de subsistência ou de ausência de alternativas para as carnes, hoje sabemos que podemos viver com uma excelente saúde sem precisar explorar animais e consumir seus restos para viver, portanto, apelar para sobrevivência ou necessidade é falso. Sabendo que há alternativas potencialmente melhores e mais éticas, alterar os sistemas alimentares para contemplá-las seria muito mais benéfico para suprir as necessidades alimentares da população e para tornar o mundo um lugar melhor e com menos sofrimento.

Para aqueles que são favoráveis à essa discriminação e a violência cometida contra os animais de outras espécies, ainda sim a carne deveria ser um dos produtos mais caros existentes, afinal, é um produto altamente custoso, considerando toda sua cadeia de produção, mas vendido extremamente barato.

Se estamos discutindo um modelo de produção para alimentar as pessoas que é ineficiente e que causa sofrimento diante de outros sistemas melhores, qualquer tipo de carne ou produto de origem animal provindo da pesca e da pecuária tradicional também está extremamente barato.

A carne é artificialmente barata devido aos subsídios governamentais, ao desrespeito ambiental e à falta de contabilização do sofrimento animal em seu custo. A inclusão destes elementos aumentaria significativamente os preços da carne, refletindo o seu verdadeiro custo de produção. Já algumas alternativas, como à carne cultivada e simulacros à base de plantas, com redução do sofrimento animal, merecem apoio governamental.

Não parece haver um cenário razoável onde a carne provinda da exploração dos animais seja cara. E no cenário mais ético, a produção dela causando sofrimento e morte aos animais, nem deveria existir. O que me leva a ideia de que quanto mais barata é tratada a exploração animal, mais barata é a nossa moralidade também, pois ela parte de uma visão egoísta e que permite causar violência, sofrimento e morte aos outros, ao invés de requerer a paz e a justiça.

Por isso tudo, a carne já é muito barata, ao contrário do que muitos pensam.

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