A dúvida metódica de Descartes e um paralelo com o conhecimento na ética

Julio Cesar Prava
8 min readSep 30, 2023

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Para refutar os céticos, Rene Descartes procurou provar que existe ao menos uma verdade, daí saiu a famosa frase: "Penso, logo existo."

Antes de chegar a essa afirmação, Descartes montou a dúvida metódica, onde propôs que duvidaria de tudo que poderia ser colocado em dúvida para encontrar algo que finalmente não pudesse ser posto em duvida.

Descartes colocou as regras da moral provisórias não forneciam uma teoria ética de qualidade, apenas orientações para não termos problemas com as leis e costumes vigentes.

Precisamos então tentar levar a duvida metódica para a ética e tentar achar uma verdade fundamental que guiará o dever ser. Primeiro, temos que colocar em duvida as teorias éticas, costumes e culturas. Há muitas posturas e teorias dentro da ética, eles são sistemas éticos concorrentes, então devemos colocá-los em dúvida, para então chegarmos a alguma coisa que dá base para a ética.

Agora, vamos buscar por princípios éticos gerais que resistam à dúvida. Esses princípios devem ser universais, aplicáveis a todas as situações e culturas, e não podem ser facilmente refutados. Assim podemos mostrar que eles são robustos o suficiente para guiar a ação moral em diferentes contextos.

Apenas seres vivos e seres vivos sencientes

Por fim, vamos tentar pensar em princípios gerais na natureza. Ao estudarmos biologia percebemos a ideia de sobrevivência, crescimento, tentativa de reprodução e morte, estes são fenômenos aceitos independentes de qualquer teoria ética. Tais coisas parecem descrições irrefutáveis em todos os organismos vivos.

Agora precisamos separar a ideia de algo que é apenas vivo e algo que sente que é vivo e atribui valor à vida, precisamos compreender então que a percepção e organização de informações não está ligada à não está necessariamente ligada à dor ou ao prazer. Isto, é pode haver organismos que organizam informações e não tem dor ou prazer. Por exemplo, muitos organismos simples, como bactérias, têm a capacidade de perceber seu ambiente e responder a estímulos, mas não se acredita que eles experimentem dor ou prazer da mesma forma que os seres humanos ou outros animais mais complexos. Eles podem ter mecanismos de detecção de nutrientes, luz, temperatura e outros fatores que os ajudam a sobreviver e se reproduzir, mas isso não implica uma experiência consciente de dor ou prazer.

Aquilo que não é vivo existe, no entanto, não têm interesses enquanto indivíduo, apenas vive. Assim podemos perceber que nem tudo que é vivo têm valor em si pois não consegue sentir ou pensar valor, para isso é preciso ter um sistema que permita tal valência. Deixar de existir para seres que não sentem que estão vivos não é teria perda de valor pois não existe valor em si. O que permite que os organismos vivos tenham valência, isto é, tenham experiências positivas e negativas é a senciência.

Há seres que sentem dor e prazer e organizam em diferentes níveis as informações. Estes seres mais complexos, como seres humanos e os animais, têm a capacidade de sentir dor e prazer, o que está ligado a sistemas nervosos mais desenvolvidos. Além disso, esses seres podem organizar informações em diferentes níveis de complexidade, aprender, fazer previsões, desenvolver linguagem e estruturar sistemas sociais.

Portanto, a relação entre a percepção, a organização de informações, a experiência de dor e prazer, e a racionalidade pode variar significativamente entre os diferentes tipos de organismos. Não há uma única fórmula que se aplique a todos os seres vivos, pois a biologia evoluiu de maneiras diversas, levando a uma variedade de sistemas de processamento de informações e experiência consciente, mas sabe-se que os seres sencientes, com cérebros, são os que têm experiências negativas e positivas de forma subjetiva.

Pode-se tentar dizer que entidades naturais ou seres vivos tem interesses, no entanto, para que haja interesses é preciso haver alguém que percebe estes interesses, isso exige algum nível de complexidade, a capacidade de busca por sobrevivência em entidades naturais ou em seres vivos como bacterias, fungos e até mesmo plantas não é subjetiva, não há alguém dentro desses organismos, então mesmo que procurem sobreviver e se reproduzir não podem avaliar de forma a atribuir valor às coisas. Até onde sabemos, não é possível afirmar que tais entidades sofrem ou tem prazer, afinal, o que parece gerar estas percepções é um sistema nervoso.

Pode-se dizer também que as plantas têm sensiblidade, mas sensibilidade não quer dizer sentidos e intepretação deles. As plantas têm a capacidade de monitorar constantemente o seu ambiente por meio de uma variedade de sensores. Embora a ideia de que as plantas detém "percepções" possa parecer estranha à primeira vista, essas respostas sensoriais são, na verdade, adaptações evolutivas que ajudam as plantas a sobreviver e prosperar em seu ambiente. As plantas não têm subjetividade ou um senso individual no sentido animal de consciência ou interpretação subjetiva das sensações. As respostas das plantas aos estímulos do ambiente são controladas por processos fisiológicos e genéticos que ocorrem automaticamente, sem uma experiência senciente ou autoconsciente.

As plantas não sentem ou têm uma consciência de sua própria existência no sentido senciente. Elas não têm a capacidade de pensar, sentir emoções ou ter uma experiência consciente de si mesmas. Portanto, não faz sentido atribuir a uma planta a percepção de sua própria existência. Quando uma planta morre, ela não tem uma percepção ou uma compreensão consciente da morte.

Uma ideia que pode ser aceita amplamente é a de que para a defesa de interesses é preciso que se tenha interesses. Logo, precisamos definir quais entidades tem interesses. Podemos delimitar que é bastante controverso atribuirmos valor direto a coisas que não requerem valor direto, daí excluímos posturas éticas que dão valor a entidades não-sencientes.

Outro critério que podemos traçar como fundamental e irrefutável, o sofrimento é ruim em si e o bem-estar é bom em si, não tem como algum indivíduo experimentar o sofrimento e achar ele bom em si. As exceções que existem, como no caso dos masoquistas ou de alguém que sofre para poder desfrutar mais depois, estão colocando a dor como instrumental para um bem maior. Portanto, o sofrimento só pode ser visto como bom quando instrumental para garantir o bem-estar e evitar ainda mais sofrimento. Logo, o sofrimento continuar ruim em si. Da mesma maneira o bem-estar só pode ser considerado ruim se trazer consequentemente sofrimento, então o bem-estar co bom em si.

Não podemos duvidar que o sofrimento é ruim, e portanto, deve ser evitado. Então conclusivamente podemos dizer que todo ser vivo com cérebro parece ter a capacidade de valência de experiências positivas e negativas e, ao contrário, ninguém consegue provar que seres vivos sem cérebros sentem experiências positivas e negativas de forma subjetiva. Também ninguém consegue atestar que para os seres que sentem o sofrimento não é ruim em si e que o prazer não é bom em si.

Para quem o sente, a dor é intrinsecamente negativa, e o bem-estar é intrinsecamente positivo. Em praticamente todas as posturas éticas, até as egoístas, se ver o bem para o indivíduo como a busca e o mal como algo a se evitar, todos eles ligados a formas simples ou complexas de dor e prazer. O valor moral que deve dar base para todas as teorias éticas, portanto, deve ser a dor e o prazer dos seres que existem e que podem ter dor e prazer. Ao adotar esse axioma, estamos estabelecendo uma fundação sólida para nossos julgamentos éticos. A partir dele, podemos desenvolver princípios éticos mais específicos e orientar nossas ações de acordo com o objetivo de minimizar a dor e promover o bem-estar. Portanto, o dever é, minimamente, evitar o sofrimento e resguardar a boa existência.

Não podemos duvidar que o sofrimento é ruim, e portanto, deve ser evitado. O sofrimento é ruim em si e o bem-estar é bom em si.

O sofrimento só pode ser visto como bom quando instrumental para garantir o bem-estar e evitar ainda mais sofrimento. Logo, o sofrimento continuar ruim em si. Da mesma maneira o bem-estar só pode ser considerado ruim se trazer consequentemente sofrimento, então o bem-estar continua bom em si.

O valor moral que dá base para todas as teorias éticas, portanto, deve ser a dor e o prazer dos seres que existem e que podem ter dor e prazer. Se há algo natural que podemos configurar com bom e mau são as experiências negativas e positivas para os indivíduos, partindo disso, podemos procurar e derivar outras implicações.

Para quem o sente, a dor é intrinsecamente negativa, e o bem-estar é intrinsecamente positivo. Ao adotar esse axioma, estamos estabelecendo uma fundação sólida para nossos julgamentos éticos. A partir dele, podemos desenvolver princípios éticos mais específicos e orientar nossas ações de acordo com o objetivo de minimizar a dor e promover o bem-estar. Portanto, o dever é, minimamente, evitar o sofrimento e resguardar a boa existência.

A dor é ruim para aquele que existe, o prazer é bom para aquele que existe. Sendo assim. Sofro, logo importo e todos que sofrem, importam também.

Iniciando o pensamento moral base

Primeiro precisamos listar as bases para as todas as teorias éticas, são elas:

Ecocentrismo, biocentrismo, senciocentrismo, humanismo, relativismo

O ecocentrismo baseia-se na defesa de entidades naturais. Até onde se sabe, tais entidades não são indivíduos e não têm experiências positivas e negativas.

O biocentrismo baseia-se na defesa de seres vivos. Até onde ser sabe existem seres vivos que não são indivíduos e não têm experiências positivas e negativas, já outros têm experiências positivas e negativas.

O senciocentrismo baseia-se na defesa de seres vivos sencientes. Até onde se sabe são todos aqueles indivíduos que têm experiências positivas e negativas.

O humanismo baseia-se na defesa de seres humanos. Até onde se sabe os seres humanos são indivíduos que têm experiências positivas e negativas, alguns deles que detém raciocínio abstrato e linguagem complexa, mas não todos.

O relativismo baseia-se na defesa relativa da moralidade, não fornecendo princípios sólidos ou busca de verdades.

O que podemos encontrar de mais sólido entre todas essas bases morais? Primeiro, que para ter uma percepção de valor é preciso haver um senso de existência. Como não podemos colocar um senso de valor em entidades não-sencientes então não podemos dar uma base moral para o ecocentrismo, nem para o biocentrismo, haja visto que não fornecem um princípio de algo que tenha interesses em ser defendido. O relativismo também pode ser descartado neste ponto, pois não fornece qualquer base sólida para a defesa de qualquer valor em si.

Então nos resta o senciocentrismo e o humanismo. O humanismo fornece critérios relevantes para a defesa de humanos, haja visto que são seres que podem ser prejudicados ou beneficiados, no entanto, as capacidades que os humanos desenvolveram mais como a capacidade de abstração ou a de linguagem não tem qualquer relevância para que um ser tenha interesses de forma subjetiva. Pensar em ética só faz sentido quando apontamos aqueles que têm interesses. Os interesses relevantes são os em não ser prejudicado e beneficiado. Portanto, apenas o senciocentrismo é sólido como delimitação de princípio ético. Precisamos partir dele para todas as teorias éticas.

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