Como as principais teorias éticas e políticas relativizaram os princípios que propuseram ao excluir os animais

Julio Cesar Prava
5 min readOct 7, 2023

--

A discriminação antropocêntrica é a tendência de dar prioridade aos interesses humanos em detrimento dos interesses dos animais, ela é motivada por viéses cognitivos mas não é bem justificada eticamente, ostentando muitas falhas de raciocínio e trazendo em si diversas contradições. Muitas teorias éticas tradicionais estão enraizadas nessa perspectiva, considerando apenas os seres humanos como detentores de direitos e interesses morais significativos. Isso reflete uma visão estreita da moralidade que exclui outras formas de vida senciente.

Ao não incluir os interesses dos animais em sua consideração ética, essas teorias demonstram uma forma de justiça parcial. A justiça parcial significa que apenas um grupo específico de seres (os seres humanos, neste caso) é considerado merecedor de consideração moral e direitos. Isso resulta em uma distribuição desigual de consideração e benefícios, o que é contrário ao princípio fundamental de tratar todos os seres com justiça.

Uma visão limitada de justiça é aquela que não reconhece a extensão total de quem merece consideração moral e proteção. A ética e a justiça devem ser universais e aplicadas imparcialmente a todas as formas de vida senciente, não apenas aos seres humanos. Ignorar os interesses dos animais em teorias éticas limita a aplicação da justiça e restringiu a compreensão completa de quem merece respeito e consideração. Da mesma maneira que não é possível requerer justiça e imparcialidade, sendo injusto e imparcial, é contraditório se dizer contra o sofrimento causando sofrimento desnecessário e não é possível se dizer à favor da liberdade destruindo a liberdade de forma desnecessária.

A maioria das pessoas que querem que os indivíduos sejam considerados iguais pelas semelhanças e não discriminados pelas diferenças biológicas acabam fazendo isso. Ao serem contra o sexismo sem se oporem ao racismo não é aplicam coerência, ao serem antiracismo sem serem anticapacitismo também não. Ser contra qualquer discriminação sem ser antiespecismo vai no mesmo sentido, é preciso ser inclusivo para se requerer inclusão, é preciso ser justo para se requerer justiça, é preciso ser contra toda opressão e sofrimento.

Assim podemos mostrar essas incoerências e aprimorar essas visões tradicionais de ética e política, incluido os seres sencientes, indivíduos que foram excluídos e marginalizados em todas elas. Abaixo mostrarei de forma resumida como as principais teorias éticas e políticas relativizaram os princípios que propuseram ao excluir os animais não-humanos.

Liberalismo

Excluiu a liberdade individual dos animais, não há porém como postular de forma coerente a proteção dos indivíduos ao negligenciar indivíduos. O liberalismo enfatiza a liberdade individual e os direitos individuais como valores centrais. No entanto, historicamente, essa abordagem raramente se estendeu aos direitos dos animais, considerando-os como propriedade de seus donos. Os animais não têm sido reconhecidos como indivíduos com interesses próprios merecedores de proteção. Se alguém de diz a favor da liberdade individual mas não é vegano, essa pessoa não é a favor da liberadade individual, afinal os animais são indivíduos. Para ser a favor da liberdade individual é preciso buscar garantir o bem-estar e uma boa vida dos indivíduos, de todos aqueles que podem ser beneficiados e prejudicados (seres sencientes), não apenas dos humanos.

Marxismo

Excluiu o tratamento mercadológico e a exploração do trabalho dos animais, não há como postular de forma coerente a proteção dos trabalhadores explorados ao negligenciar trabalhadores explorados. O marxismo concentra-se na exploração das classes trabalhadoras e na crítica ao sistema capitalista. Embora essa teoria se preocupe com questões de exploração, raramente incluiu a exploração dos animais como parte integrante de suas análises. Animais frequentemente foram tratados como recursos a serem explorados dentro do sistema de produção.

Utilitarismo

Excluiu a pretensão de reduzir sofrimento ao não incluir os animais, não há como postular de forma coerente a redução de sofrimento sem incluir todo sofrimento e todos aqueles que podem sofrer. O utilitarismo avalia a moralidade das ações com base na maximização da felicidade e na minimização do sofrimento. No entanto, historicamente, essa teoria se concentrou principalmente nos interesses dos seres humanos, negligenciando amplamente os interesses dos animais. Muitos filósofos utilitaristas argumentaram que o sofrimento animal é menos importante do que o sofrimento humano, o que exclui os animais da consideração moral significativa.

Deontologia

Excluiu os animais das regras gerais que pretenderam postular, não há como postular de forma coerente regras com termos amplos sem aplicar essas regras a todos que podem ser afetados por estas regras. As teorias deontológicas, como a ética kantiana e teorias de direitos, enfatizam o respeito pelo dever e pela moralidade baseada em regras. No entanto, essas teorias costumam se concentrar nos deveres em relação aos seres humanos e raramente incluem deveres em relação aos animais. Os animais geralmente não são considerados sujeitos de direitos ou proteção moral nas formulações tradicionais dessa teoria.

Feminismo

Excluiu os sistemas reprodutivos de fêmeas e a exploração opressiva delas por pertencerem a outras espécies. Embora o feminismo se concentre na igualdade de gênero e na eliminação da opressão das fêmeas da espécie humana, muitas vezes não abordou diretamente a exploração dos animais na indústria de produtos de origem animal e dos sistemas reprodutivos femininos de indivíduos de outras espécies. Algumas feministas argumentaram que a exploração animal e a exploração das mulheres estão interconectadas, mas nem todos os ramos do feminismo incorporaram essa perspectiva.

Conclusão

A maioria das teorias éticas predominantes pretenderam trazer bem-estar, liberdade e uma vida significativa para os indivíduos e grupos em geral, mas ao desconsiderar os animais negligenciam estes valores para eles, que são também indivíduos. Até hoje os humanos requisitaram paz e não-violência, agindo com violência e a miséria dos outros, propagaram bem-estar ao passo que impuseram este bem-estar para poucos alicerçados no mal-estar de muitos outros, enviesados por uma discriminação antropocêntrica. Essa visão criou pontos cegos nos humanos que os fez utilizar uma justiça parcial ao invés de imparcial, como pretendiam, além disso, forneceu para nós uma visão débil, limitada e insustentável de justiça, de ética e de valores.

A insuficiência e incoerência de proclamar valores éticos e morais sem aplicá-los de forma integral e inclusiva é evidente na falta de congruência entre o que dizemos valorizar e como agimos na prática. Quando afirmamos princípios como igualdade, justiça e compaixão, mas falhamos em aplicá-los de maneira consistente em todas as áreas de nossa vida e em relação a todas as formas de vida senciente, comprometemos a integridade de nossos valores. Isso não apenas mina a credibilidade de nossos princípios éticos, mas também perpetua desigualdades e injustiças, criando um hiato entre o ideal e a realidade que mina a busca por um mundo mais justo e compassivo. A verdadeira coerência ética exige a aplicação consistente de nossos valores em todas as esferas da vida, reconhecendo a interconexão de todos os seres que podem ser beneficiados e prejudicados.

As verdades são provisórias, estamos constantemente revisando e aprimorando nossas certezas. Os paradigmas éticos majoritariamente estabelecidos até então são falhos, como diversos pensadores tem mostrado nas últimas décadas, apontando que devemos incluir todos os seres sencientes na esfera de consideração moral. Claro, ainda há muito trabalho a ser feito para que as preocupações éticas em relação aos animais sejam completamente incorporadas em teorias éticas e políticas de forma mais ampla, bem como na prática social e legal que protejam os interesses semelhantes daqueles que podem ser afetados. Por isso é necessário uma promoção contínua e conscientização das pessoas, sobre essa visão mais abrangente de justiça e ética que inclui todos os seres sencientes em nossa consideração moral e legal.

--

--